11 Rotina
Se estou fora dos cânones correntes, aqui não trabalho à maneira do “everything goes” (vale tudo) como numa produção literária ficcional e especulativa, onde qualquer ideia digna de nota contribuiria para a narrativa. Ao contrário disso, conectei minhas liberdades criativas e associações de ideias à pesquisa científica tão extensa e pormenorizada quanto minha capacidade alcançou, percorrendo áreas a pesquisa que não são minha especialidade para tentar reunir o que está separado naquilo que Morin chama do “impossível possível”, uma missão “cada vez mais impossível”, mas cuja “abdicação tornou-se ainda mais impossível”57, já que58
Enfrentamos […] um muro triplo: o muro enciclopédico [incapacidade de percorrer o labirinto e adquirir conhecimento suficiente], o muro epistemológico [a interdependência entre os conceitos do labirinto], o muro lógico [a impossibilidade de chegarmos a princípios fundamentais de onde o labirinto se inicia]. Dessa forma, a missão […] é impossível.
Nesta escolha de ser realista ao tentar o impossível59, sigo a indicação de Morin para não procurar “nem o saber geral nem a teoria unitária”, mas “a pesquisa de um método que possa articular o que está separado e reunir o que está disjunto”60.
Se estou limitado pela exposição de hipóteses e fatos com fundamentação em pesquisa, não me limitei na maneira de realizar, organizar e apresentar tal pesquisa,
Adotando um procedimento espiral na própria rotina de trabalho.
Tendo cuidado e atenção na busca, no uso e na interpretação das fontes.
Organizando o material numa estrutura inter e hipertextual que facilite tanto unir o que está separado quanto separar o que está junto conforme necessário.
Entendendo a limitação das traduções e transduções.
Reconhecendo os perigos do conhecimento construído com base em etimologias.
Lidando com a questão da verdade sem querer impor verdades ou simplesmente fugir da questão.
Assumindo um perspectivismo não somente subjetivo como também objetivo.
A importância de cada um destes cuidados requer algumas notas adicionais.
11.1 Procedimento
Apesar da menção do caminho imprevisível, minha metodologia é composta de bastante rotinas e técnicas de estudo.
Nestes ensaios, usei um método “arbóreo-espiral”, realizando diversas “passagens” pelo texto e por um apêndice cheio de anotações. A cada passagem espiralada, fui apensando pensamentos e trechos à maneira de uma “Árvore do Conhecimento”61 cujo resultado pode ser facilmente constatato pela leitura do Sumário.
Um “loop”, ou “laço”, é um passeio do começo ao fim de cada ensaio (ou de todos eles), assim como e das anotações, ou do fim ao começo, ou aleatoriamente. A cada passagem, melhorava e reorganizava o encadeamento das ideias.
Algumas passagens eram mais debruçadas em detalhes: redigir e revisar cada tópico das anotações como um mini-texto autocontido.
Noutras, o enfoque era a roteirização mais ampla, com visão mais geral e narrativa, como a montagem de tópicos prontos para serem encaixados nalgum “ponto de entrada de um ensaio”, já que não há questão de início quando estamos para entrar dentro de um turbilhão, mas sim a questão de entrada: qual será o ponto de entrada (entrypoint).
Algumas passagens pelo loop consistiam em roteirização mais argumentativas por determinados assuntos, onde a busca por referências é deixada para um segundo momento e o foco está em narrar com fluência para criar e conectar os argumentos.
Outras passagens eram mais detalhistas, com muitos acabamentos, ajustes, revisões, inclusões de notas, imagens, figuras, diagramas etc.
Nos intervalos entre tantos mergulhos, anotava o pouco que conseguia do meu “trem” de pensamentos e acabava por esquecer o resto, que muitas vezes era relembrado justamente pela rotina de sempre revisitar o que já havia sido escrito e o que estava incompleto.
Os “laços” das sessões de trabalho permitiam que montasse os argumentos num todo coerente e com transição suave entre temas, ao mesmo tempo que me ensinava a retirar o excessos de redundâncias que vão além do que é necessário para coompreensão e memorização do texto.
Intercalei, ora livremente, ora “organogramaticamente”, as leituras e fichamentos dos textos com os momentos de redação, para que a mente trabalhasse simultaneamente num turbilhão de ideas mas conseguindo estabelecer padrões.
11.2 Das fontes, interpretações e usos
Uso e abuso profusamente de citações e referências bibliográficas. Não economizo espaço quando considero que a fonte pode falar melhor e mais precisamente em verbatim do que a substituição por um breve resumo meu.
Boto um monte de autorias estranhas umas às outras para “conversar”: cito um monte de gente, mas não li tudo o que foi escrito e nem tenho como garantir que lembro ou entendo tudo o que foi escrito por essa gente; nem necessariamente concordo com tudo o que escreveram. Mas, na medida do possível, li na íntegra e detalhadamente todas as obras que considerei serem principais para o estudo, além de fazer extensos fichamentos dentro da minha capacidade.
Em certo sentido, o presente resgate histórico, filológico, etimológico e filosófico feito não é apenas uma genealogia, mas também uma tentiva de resgate de uma impossível leitura de um proverbial “código fonte” da civilização ocidental: não há tal código pois a civilização não foi “compilada” a partir de ideias mas sim imbricada com elas, a por elas levada ao simultâneo esplendor e ruína.
No máximo, o recorte feito funciona como um conjunto de retratos de épocas distintas, como numa pequena coleção de fósseis ou restos arqueológicos de várias épocas e locais.
Da mesma forma, não tenho os meios de consultar toda a literatura nem todos os objetos técnicos remanescentes. A narrativa que monto é parcial, mas ainda assim consigo perceber diferenças e semelhanças, transformações e deformações maquínicas.
Inspirado pela Introdução de Black (2002) do seu rigoroso livro sobre a cooperação da empresa informática IBM com o regime nazista, busquei fundamentar minha pesquisa ao máximo em outros textos:
Behind every text footnote is a file folder with all the hardcopy documentation needed to document every sentence in this book at a moment’s notice. Moreover, I assembled a team of hair-splitting, nitpicking, adversarial researchers and archivists to review each and every sentence, collectively ensuring that each fact and fragment of a fact was backed up with the necessary black and white documents.
Mas, ao contrário de Black, não tive a mesma condição operacional, minha pesquisa tem um escopo mais amplo e lida com documentos apenas indiretamente. Além disso, ela também habita o terreno das opiniões e interpretações.
Assim, dada a dificuldade de separa o que eu digo do que terceiros dizem e do que entendo do que terceiros disseram, adotarei o esquema a seguir:
- Afirmações que referenciam o trabalho de terceiros:
Trechos de citações se referem às afirmações de outras autorias.
Afirmações minhas ligadas à referências de outras autorias podem ser consideradas apenas minha interpretação da referência ou como afirmações minhas amparadas pela minha interpretação da referência.
Tento fazer apenas afirmações sobre eventos que aconteceram ou supostamente aconteceram acompanhadas de referências de terceiros sobre os eventos.
- Afirmações sem referências a trabalhos de terceiros:
Neste caso, me coloco como fonte primária de afirmações, mesmo que elas sejam produtos indiretamente de minhas influências.
Tais afirmações, ao se referirem a situações históricas e não a experimentos empíricos por mim conduzidos, constituem o núcleo das minhas interpretações do mundo, baseadas do meu conhecimento – e em muitos casos na falta de conhecimento mas aprofundado.
Vale ressaltar que estes ensaios não são uma peça jurídica de defesa ou acusação. São convites para pensar nossa sociedade sob diversas perspectivas!
11.3 Etimologia e etimogoria
Baseio ou complemento muitas discussões em resgates etimológicos, isto é, da determinação de origens e modificações das linguagens com enfoque nas palavras62, a ponto de se tornar necessária uma exposição crítica sobre o meu procedimento, para evitar de cair na chamada “falácia etimológica”63 de impor significados antigos das palavras como os “corretos” e também me afastar do perigo de uma etimologia descuidada64:
The mere command of language usage and the consultation of dictionaries do not suffice to enable us to follow this path. […] who attentively [195] thinks along with us will one day notice and recognize that we are not just skimming off random meanings of mere words in order to then construct a philosophy and declare that the insight gained into the matter through the word is exhaustive and sufficient. What is a word without the connection to what it names and to what comes to presence in the word? We must avoid all empty and coincidental etymologies, for they degenerate into frivolous play if what is named by the word is not first thought and continually reconsidered, slowly and at length, and continually examined and reexamined in its word essence.
A primeira questão, da falácia, implica no uso ideológico do processo de resgate como justificação para uma “verdade política” assentada num possível significado originário de palavras65:
the supposed origin of countless terms (like “revolution,” “democracy,” “freedom,” “law,” “marriage,” “family,” “church,” “state,” “pagan,” “heretic”) is invoked and then supported or debunked in order to revise definitions, substantiate pleas, and serve specific agendas.
[…]
a typical formula for arguments based on etymology will be something like “the original meaning/sense of the word/term x was.” that is often the starting point from which inferences are drawn and claims made as to the efficacy, the appropriateness, or the political correctness of the word(s) being discussed. It is on the basis of such claims that definitions and redefinitions are then advocated. and, far from being the preserve of scholars or politicians, arguments from etymology are ubiquitous
Para não incidir no erro apontado, serei estrito em indicar os significados mais originários não para contestar uma suposta “deturpação” pelos sentidos correntes, mas sim como um convite para repensarmos os conceitos e dinâmicas daquilo que é explicado com as palavras.
Em segundo lugar, almejo rigor no resgate etimológico ao mesmo tempo em que possa dispor de liberdade associativa para conjecturar sentidos originários ou mesmo convencionar um significado novo a uma palavra para os fins deste texto.
Ao invés de me colocar num dos extremos do debate da “etimologia científica” (que seria verdadeira) versus “etimologia popular” (quer seria falsa), seguirei a análise crítica feita por Bello (2007) sobre “caminhos esquecidos” da “biografia do mundo” e do pensamento sobre as palavras, quando muito apropriadamente conceitua a chamada “etimogoria” como uma espécie de recurso unindo etimologia com discussões alegóricas, que mesmo incompletas e questionáveis conseguem ir adiante onde a etimologia mais estrita não consegue ir66:
one must […] recognize the limits of his phono-semantic analysis, removed from the historical events that, in Baldinger’s words, are the background of word-biographies (la biographie du mot). Baldinger claimed that one of the hardest tasks etymology will have to undertake is precisely establishing the creative milieu (le milieu créateur), the set of social, political, geographical circumstances that make the histories of words as convoluted and as fascinating as the histories of individual human beings: “It is a question of finding the link between the history of the word and the history of humans as historical, social, and cultural beings.”
Partirei então de etimologias mais estruturalistas e modernas assentadas na fonologia, morfologia, lexicografia etc67 buscadas em reconhecidos dicionários, para então iniciar minha discussão de caráter alegórico pois, como verão, a discussão que vai além da etimologia “dura” será muito importante exatamente para tratar da evocação imaginativa das palavras ao longo dos tempos e em contextos históricos específicos, já que68
as Ottavio Lurati puts it, “we are less and less content with a phonetic etymology. We must move on with determination to an etymology of cultural type, anxious to link more systematically linguistic data with particular forms of human existence.”
Em muitos casos, só uma investigação filológica69 e etimológica fornecerão evidências necessárias para prosseguir com a discussão, especialmente no que tange a objetos técnicos menciondos em textos clássicos mas cujos exemplares não se encontram disponíveis como peças arqueológicas e cujas representações pictóricas são incompletas.
Parto do princípio de que as mudanças na linguagem não são explicadas exclusivamente por regras lexicográficas, morfológicas ou fonéticas, mas que principalmente são impulsionadas pelas necessidades, contingências e embates históricos austentes nos dicionários.
Por isso, minhas etimologias muitas vezes serão seguidas de etimogorias assim como análises mais especulativas. A passagem de um modo de análise para outro será nítida – como por exemplo é notável na etimologia de método feita no início deste capítulo – de modo a evitar a etimologização isto é, criar etimologias a partir de jogos e associações de palavras e ideias sem que estas se assentem em procedimentos mais formais. O caminho, aliás, será mais de uma etimogonia, neologismo aqui criado para dar conta de um diálogo contrapontual entre significados novos, antigos ou (re-)criados para as palavras. Às vezes vai até parecer que esse processo tende à etimomania!
References
Morin (2005) Cap. 1 pág. 25. A incapacidade de pular estes muros leva ao que Morin chama da “Escola do Luto” e sua prática de buscar apenas a especialização dos conhecimentos, relegando as questões fundamentais para fora da ciência.↩︎
(TODO?) sobre o dizer “seja realista, demande o impossível”↩︎
A palavra etimologia cuja própria etimologia nos remonta ao grego antigo etumología, é formada por étumos (verdadeiro, real) e logos (enquanto palavra, discurso), vide Durkin (2009) págs. 27-28; Beekes (2010) págs. 474, 477, 841, 868. No meu entendimento mais contemporâneo, a etimologia seria a descoberta de um disurso ou sentido não necessariamente “verdadeiro”, mas ao menos originário, genealógico e escondido nas palavras, vide Capurro e Hjørland (2003) pág. 350 e Capurro (2009) pág. 125.↩︎
Bello (2007) pág. 2; Durkin (2009) pág. 27: “The etymological fallacy is the idea that knowing about a word’s origin, and particularly its original meaning, gives us the key to understanding its present-day use. Very freguently, this is combined with an assertion about how a word ought to be used today”.↩︎