1 Introdução

Versão 0.1.0 - 14/12/2025

Este é o volume introdutório do Projeto Vertigem1, oferecendo um apoio possível para caminhadas metodológicas.

Assim como os outros volumes, ele é apresentado na forma de ensaio em construção, um livro vivo atualizado ocasionalmente.

1.1 Livros Vivos

A forma final destes trabalhos possivelmente intermináveis é destinada, com sorte, ao arquivo para as próximas gerações, e com mais sorte ainda para o registro histórico-arqueológico-geológico. Ao Livro Vivo cabe a escrita, a re-escrita, a afirmação, a reafirmação, ir adiante, voltar atrás, revisar, reconsiderar, logar, dialogar, trialogar, quadrilogar, enealogar…

Este proponente do Livro Vivo almeja se libertar da ditadura do grande lançamento, da apoteose, da glória, do ineditismo, da novidade, da acurácia total, da ausência de erros, do perfeccionismo, do rigor total e da máxima excelência, da consistência, da coerência total e da Academia Brasileira de Letras. Não me levem a mal: estou dando o melhor de mim, mas entendo que isso nunca será suficiente perante o julgamento histórico e o escrutínio dos tempos.

Livros vivos são para livrar do medo, da angústia e ansiedade da crítica, da resenha, da irrelevância, da redundância, da incompletude, da contradição, do paradoxo assim como de tantos outros equívocos, de dizer alguma tolice, de falar demais, de falar de menos, da existência de obras que já disseram isto e aquilo – e das quais nunca ouvi falar, ou não tive tempo de ingerir –, de não falar como e do quê as correntes de pensamento mais “atuais” e “contemporâneas” tratam, dos temas considerados “inescapáveis”, “incontornáveis” e “obrigatórios” de serem abordados, assim como de tantos outros incômodos que fream a fluência. Se eu tentar conciliar muita coisa terminarei por não fazer nada, por não redigir e publicar nada.

Assim como para escapar da vaidade de ser querido, influente, lembrado, adorado, importante, necessário, imortalizado; de fazer isso em troca de algo, na expectativa de compensação, de reconhecimento e de tantas outras tristes travas e faltas que impedem viver com alegria e potência para produzir (e também para não produzir nada).

Também para desobrigar do delírio de escrever a obra mágica que salvará o mundo e que inspirará gerações. Do devaneio de que bastaria um bom texto para disparar uma nova narrativa emancipatória, e de que esta impulsionará mudanças benéficas.

Tanto melhor se esta obra e esta caminhada contribuírem para um mundo justo e vivível. Assim o custo planetário2 para sua produção não terá sido tão em vão, mesmo que isso seja difícil, ou impossível, de avaliar.

Incorro talvez naquilo que Borges chama de “desvario laborioso e empobrecedor”3:

Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinientas páginas una idea, cuya perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario.

Seguindo o próprio método usual de Borges, porém, indagamos que qualquer texto é uma versão resumida de um outro maior, de tal modo que apenas estamos falando do tamanho do labor e do empobrecimento de cada pessoa que assim procede na triste – ou alegre – tarefa da escrita.

Sem esse desvario, apenas teríamos o resumo do resumo do resumo… que se resumiria a quê? A busca do resumo talvez seja um desvario em mesmo grau e volume, já que sua produção demanda um enorme trabalho de síntese.

Digo por mim que o processo envolve sim dispêndio de energia, algum empobrecimento e bastante envelhecimento, ao mesmo tempo que fez parte de um processo de re-energização, de tentar envelhecer somente o inevitável, de um processo terapêutico e de busca por algum conhecimento e sabedoria dentro do possível.

De todo modo, a forma final de todo esse trabalho será, usando uma expressão de Gavin Adams, uma tentativa de produzir um “entulho de qualidade”: mais um sedimento depositado nos arquivos… um sumário-síntese-análise, um grande arremedo.

Enquanto isto, ele será um trabalho de caminhada, “de travessia”, de trabalho, work-in-progress e uma das concretizações do meu processo metodológico de aprendizado, onde aquilo que antes era perspectiva rapidamente pode ser tornar retrospectiva, ou conjectura desatualizada, defasada em relação ao mundo, e re-arborizada em sequências de letras que não cansam de mudar de lugar, tal como formigas inusitadas.

Trata-se portanto de um fazimento4:

Fazimento é um termo criado e utilizado por Darcy Ribeiro para caracterizar a concretude do pensamento, isto é, o movimento do pensamento (teoria) com a sua ação concreta (prática). Designa a reação do homem às suas condições reais de existência na busca incessante da transformação social. Esse termo nos remete a palavra grega práxis (ação- reflexão-ação), que é um conceito utilizado para afirmar a relação dialética entre o homem e a natureza, na qual o homem, ao transformar a natureza com o seu trabalho, transforma a si mesmo.

O Livro Vivo é uma saída para vários devaneios sobre o impacto de uma obra, assim como uma solução pragmática para a necessidade de pensar com o e em movimento5, evitando também cair na procrastinação eterna da síndrome do “ainda não está pronto”.

Esta é uma aposta pra valer – mas sem expectativa e sem esperança – de que esta obra possa ajudar: pode haver uma simultânea importância e irrelevância do que pesquiso no meu tempo livre: creio estar pesquisando temas de importância fundamental, ao passo de que acredito que tal pesquisa não é aquilo que está faltando para que as coisas dêem certo. Pode contribuir, mas não é crucial. Talvez seu impacto e influência seja mínimo, e passe desapercebido. Como disse um amigo de um amigo, este seria “um pequeno passo para a humanidade, mas um grande passo para mim”.

Daí a importância da humildade que acompanha a confecção dos livros vivos: eles não registram em pedra a versão final dos argumentos, mas estão inseridos nos debates, podem influenciá-los um pouco e por eles são muito influenciados.

Longe de estarem acabados, encerrados, herméticos e auto-contidos, os livros vivos nem sempre resolvem ou “desenvolvem” todas as questões que colocam. Muitas pontas ficam soltas. Isto poderia ser considerado ruim, mas aqui será tido como um convite para quem quiser seguir caminhos esquecidos, abandonados ou ainda não percorridos.

Os livros vivos são parte de uma atitude de compartilhar a pesquisa enquanto ela ocorre.

Os livros vivos podem ser úteis como apoio a conversas e debates. Também são vivos na medida em que mudam junto com todo esse papo. Invertando um pouco a lógica usual focada na supervalorização das publicações, as discussões são o principal, e os livros são auxiliares.

Diz-se que uma pessoa é um livro aberto… imaginemos então se cada pessoa pudesse, se quisesse, escrever seus livros, e se houvesse milhões ou até bilhões de livros sendo escritos. A presente metodologia talvez possa ajudar, inspirar e apoiar mais pessoas sistematizando discussões, como iniciativas individuais ou coletivas.

Mais importante do que todos esses livros serem lidos, é a possibilidade de que possam ser lidos caso haja interesse. E o interesse pode surgir em conversas. Se alguém quiser mais detalhes sobre uma ideia, tópico etc, pode consultar um livro vivo onde alguém sistematizou o assunto.

Livros Vivos fazem parte da documentação dos debates e da memória coletiva: registram o que se pensou, discutiu e aprendeu. Ajudam nos próximos debates, para que as discussões não tenham que necessariamente partir sempre dos mesmos começos.

O processo envole a tomada, organização e sistematização de anotações, continuando com sua disponibilização pública num formato pronto para reuso e reaproveitamento.

Livro Vivo é o análogo do working paper – um rascunho público de um trabalho, de uma obra em andamento mas que já é divulgada. Inclusive um livro vivo pode estar associado a working papers que vivamente resumam um trabalho maior.

Livros Vivos: porque crescem, amadurecem, podem se dividir e até apodrecer… “vida” num sentido mais amplo: como “parte viva da vida”.

1.2 Redemunho

Minha mente tem se assemelhado a um redemoinho turbulento, e sou uma espécie de náufrago tentando construir um barco conforme os vários pedaços de navios cognitivos se chocam contra mim.

Anoto tudo sempre que posso, o quanto antes, preferencialmente no momento em que os pensamentos fluem como um córrego irrigando as árvores do conhecimento.

Mesmo que seja no meio da noite, entre um pesadelo e outro. Meio adormecido, deposito uma mensagem na garrafa que atravessa os mares da madrugada.

Inspiração não marca hora, e se vacilar eu marco bobeira.

A espiral caótica da minha atividade mental é arduamente organizada em árvores.

O material que reúno na tentativa de fazer um barco acaba servindo de adubo paras as árvores quando finalmente consigo uma atracagem temporária, pois minha jangada não tem âncora e os ventos me sugam novamente para o mar.

A tempestade mental é intercalada com momentos serenos e de tranquilidade, mas muitas vezes também de angústia. A edição é árdua e trabalhosa. O processo todo é uma terapia ocupacional com a incerta potência da mudança.

O que motiva, isto é, o que põe tudo em movimento é este fluxo incessante, muito maior que eu. Lido como posso, sem saber se serei lido. Faço porque tenho que fazer, um tenho quê simplesmente porque tudo isso me atravessa. Sou um mero canal de transmissão que cria e principalmente recria.

O redemoinho é da nossa época, de várias épocas. Pensamentos de muitas gentes compõem este caldo turvo e agitado. A turbidez, a salinidade, a acidez, a densidade, temperatura e viscosidade são variáveis. Uma ilha aqui e outra ali são somente solidificações do magma que circula por debaixo.

No princípio não havia verbo, muito menos fonema, palavra, frase, pontuação, parágrafo, capítulo ou volume. No fim talvez também não haja nada disso. É no meio que vamos preenchendo com o que der e vier.

Livros vivos, obras inacabadas e sem pontos finais. Somente mais um elo na correnteza, e o que segue adiante é um relato um pouco mais detalhado do processo.

References

———. 1997. Ficciones. Alianza Editorial.
Moraes, Alana. 2020. “Experimentações baldias & paixões de retomada - vida e luta na cidade-acampamento”. Tese de doutorado, Museu Nacional - PPGAS/UFRJ. https://www.academia.edu/44927479/Experimenta\%C3\%A7\%C3\%B5es_baldias_and_paix\%C3\%B5es_de_retomada_vida_e_luta_na_cidade_acampamento.
Morin, Edgar. 2005. O Método 1. A natureza da natureza. Editora Sulina.
———. 2025. Projeto Vertigem. Vol. Publicações Vertiginosas. https://vertigem.fluxo.info.
Souza, Silvio Claudio, e Carla Zottolo Souza. 2019. “A importância do pensamento e dos fazimentos do intelectual Darcy Ribeiro”. Revista Teias 20 (56). https://doi.org/10.12957/teias.2019.39611.
Tible, Jean. 2022. Política Selvagem. 1º ed. GLAC edições; n-1 edições.

  1. Rhatto (2025).↩︎

  2. Até o momento, este estudo teve um custo significativo para o planeta, em termos de eletricidade gasta e outros recursos como a minha alimentação, sendo uma aposta para que esse dispêndio, mesmo que não provoque um retorno direto de boas mudanças, seja um desperdício criativo na linha do que é discutido por exemplo em Morin (2005) pág. 409: “Quantos discursos, palavras, cantos, poemas, fábulas estão assim dispersos nos éteres do Planeta Terra? Certamente […], este sistema de comunicação faz parte da organização social e corresponde a estratégias de disseminação, que, como todas as disseminações, especulam com sorte e comportam um enorme dejeto e dispersão.”. Certamente eu poderia ter usado tempo e recursos de maneiras muito piores!↩︎

  3. Borges (1997) - Prólogo.↩︎

  4. Souza e Souza (2019) pág. 51.↩︎

  5. No espírito de pesquisa-luta tal como descrito em Moraes (2020) e Tible (2022).↩︎