12 (In)definições

Há uma infinidade de escolhas possíveis no caminho de produção do conhecimento e do uso deste para agir no mundo. Faremos uma série destas escolhas, a começar por definir.

No decorrer destes ensaios, muitas definições serão feitas, mas sem que haja a intenção de torná-las verdades ou “leis” sobre a realidade e sim construções feitas a partir de uma perspectiva bem específica que pode nos ajudar a prosseguir70.

Usaremos vários conceitos, mas para isso precisaremos discutir a aplicabilidade e os limites de cada um para que deles não nos tornemos reféns. Muitos estão hoje mais associados à justificação do estado das coisas, mas todos podem ser disputados. Nenhum deles é suficiente para exprimir a variedade, a pluralidade, diversidade, as diferenças e parcialidades do mundo. Há política por detrás de todos os conceitos, inclusive no de política.

Aqui se trata de construir conceitos que nos sirvam e compará-los com a construção histórica destes conceitos, nem que seja para destruir todos eles. Especialmente os conceitos de Máquina, Informação e Estado, tão mencionados e em geral tão indefinidos.

No espírito de uma passagem atribuída ao filósofo Epicuro71, acredito que aqui seja importante

aprender as ideias inerentes às palavras, para podermos ser capazes de nos referir a elas e julgar assim as inferências de opinião ou problemas de investigação ou reflexão, de maneira a não deixar tudo incerto e não ter de continuar explicando tudo até o infinito, ou então usar palavras destituídas de sentido.

O seguinte trecho de Capurro e Hjørland (2003)72 é um ótimo complemento à argumentação epicúrea:

Chalmers (1999, pp. 104-105) has provided an important analysis of the meaning of scientific concepts:

Observation statements must be expressed in the language of some theory. Consequently, it is argued, the statements, and the concepts figuring in them, will be as precise and informative as the theory in whose language they are formed is precise and informative. […] If this suggested close connection between precision of meaning of a term or statement and the role played by that term or statement in a theory is valid, then the need for coherently structured theories would seem to follow directly from it.

Chalmers also considers alternative ways of defining scientific terms, by, for example, lexical or ostensive definitions. The main problem with lexical definitions is that concepts can be defined only in terms of other concepts, the meanings of which are given. If the meanings of these latter concepts are themselves established by definition, it is clear that an infinite regress will result, unless the meanings of some concepts are known by other means. A dictionary is useless unless we already know the meanings of many words. […] The main problem with ostensive definitions is that they are difficult to sustain, even in the case of an elementary notion like apple.

[…] The dependence of the meaning of concepts on the structure of the theory in which they occur – and the dependence of the precision of the former on the precision and degree of coherence of the latter – is thus made plausible by noting the limitations of some of the alternative ways in which a concept might be thought to acquire meaning.

Chalmers also points out that the history of a concept […] typically involves the emergence of the concept as a vague idea, followed by its gradual clarification as the theory in which it plays a part takes on a more precise and coherent form. […]

Following Chalmers, we propose that the scientific definitions of terms like information depend on the roles we give them in our theories; in other words, the type of methodological work they must do for us.

Busco um balanço entre a definição certeira sem a necessidade de explicações tendendo ao infinito de um labirinto enciclopédico, operando numa margem entre o determinado e o indeterminado.

Ao mesmo tempo que em que busco um acordo mínimo explícito sobre alguns conceitos-chave mas sem fechar a questão sobre eles73:

O vocabulário das ciências humanas, infelizmente, não autorizava muito as definições peremptórias. Sem que tudo nelas seja incerto ou se encontre em devir, a maioria dos termos, longe de estarem fixados de uma vez por todas, variam de autor para autor e não param de evoluir aos nossos olhos. “As palavras”, diz Lévi-Strauss, “são instrumentos que cada um de nós tem a liberdade de aplicar para o uso que desejar, desde que se explique sobre suas intenções.” Ou seja, nos setores das ciências humanas (como no da filosofia), as palavras mais simples variam freqüente e forçosamente de sentido, conforme o pensamento que as anima e as utiliza.

Por isso, gostaria de começar por definir meu entendimento de definição que será usado neste texto. Ou seja, preciso definir o que aqui em diante chamarei de definição para que não caia no mesmo erro científico que tento apontar, ao mesmo tempo que que iniciamos a montagem desta nossa árvore espiralada de conhecimento.

Definição 12.1 (Definição) Até menção em contrário, chamarei de “definição” um processo de finição, isto é, de dar um fim provisório a uma discussão. Não porque a discussão acaba ou porque o assunto foi esgotado, mas porque já cansei de discuti-la, me faltando vigor e a vontade de continuar a discorrer sobre ela; ou porque já cheguei a um ponto suficiente para usá-la na minha caminhada argumentativa.

Quando menciono o cansaço e a vigor, estou a par do entendimento de Umberto Eco dos dicionários – conjuntos de definições – enquanto “árvores de conhecimento” limitadas, não-globais e com função prática74:

The system of hyperonyms [hypernomes, termos guarda-chuva] provided by a dictionary represents a way to save ‘definitional energies’. When one says that a rose is a flower, one does not suggest that ‘flower’ is a primitive that cannot be interpreted; one simply assumes that, for the sake of economy, in that specific context, all the properties that are commonly assigned to flowers should not be challenged. Otherwise, one would say a rose is a flower, but….

[…]

The function of hyperonyms in a lexical system depends exactly on the epistemological decisions that govern the life of a culture. We can make up dictionary-like representation in order to save definitional energies in any context in which certain ‘central’ assumptions of a cultural system are taken for granted. We presuppose a local dictionary every time we want to recognize and to circumscribe an area of consensus within which a given discourse should stay, because no single discourse is designed to change globally our worldview.

Uma definição é um começo ou fim provisório: um ponto de partida inicial ou uma conclusão temporária para uma dada discussão.

Definições podem ser revistas, melhoradas, criticadas, analisadas para entender se dependem de outras definições assumidas implicitamente.

Sob o ponto de vista da transmissão científica75,

a idéia básica para que existam conceitos é que ao utilizar uma determinada palavra dentro de uma comunidade de falantes se obtenha um efeito parecido em todos os ouvintes, de modo a fazer com que haja compreensão sobre o que se está falando. Esse é o objetivo das definições e por isso existe preocupação a respeito de sua precisão.

O temor é que, sem o cuidado necessário com essa precisão, um determinado autor corre o risco de falar sobre algo sem que haja um acordo de entendimento básico com seus ouvintes acerca dos termos que estão sendo utilizados. Ou seja, pode-se falar e conversar sem que ninguém saiba ao certo o que está sendo dito, o que torna essa comunicação imprevisível e virtualmente sem sentido. Para a mentalidade científica é preciso saber muito bem do que se está tratando em cada momento, caso contrário nenhuma comunicação verdadeira é possível.

Este tipo de cuidado é necessário não somente no debate científico mas especialmente quando estamos tratando de questões políticas que afetam o curso da vida.

Por outro lado, definições podem levar o pensamento e a criatividade à inanição76:

A transmissão científica, em seu lado positivo, permite o estabelecimento de uma linguagem comum e significados estáveis, essenciais para o progresso do conhecimento e seu ensino77. A organização e sistematização levam a novos avanços e intercâmbio mais fácil com outras áreas. Em seu aspecto negativo pode se tornar uma camisa de força para a teoria, tornando os conceitos elementos imutáveis e o sistema algo fechado, aniquilando o espírito investigativo. Desestimula a relação pessoal com a teoria e o conteúdo, tratando tudo de forma fria, impessoal e asséptica, podendo gerar uma teoria morta, a ser decorada e não vivida.

Veremos na discussão sobre comunicação no ensaio “Máquinas de Estado”78 que esta ideia positiva de definição tem sérios problemas, pois não podemos nos basear no pressuposto de que uma definição exprime corretamente um conceito tal como intencionado por quem a criou; que quem a criou de fato tem nitidez sobre o conceito que quer exprimir; que necessariamente outras pessoas compreenderão a definição como intencionado; e muito menos que uma definição não tenha meros fins persuasivos79:

Many kinds of definitions exist (Yagisawa, 1999). The tendency to use and define terms in order to impress other people has been called persuasive definition.

Definições, então, tanto ajudam como atrapalham: servem como pontos temporários de partida ou de chegada mas também podem ser usadas facilmente para mistificar um assunto, esconder os pensamentos usados para construir uma argumentação, limitar a capacidade crítica e a vontade de saber ou mesmo criar uma ilusão de mútuo entendimento. Tento não cair nestes erros ao indicar, tanto quanto possível, o caminho de construção de cada definição, sem apresentá-las “do nada” e também não assumir que elas são necessariamente aceitas ou compreendidas por quem as lê da mesma maneira como eu as aceito e as compreendo.

Definições também são dispositivos literários que permitem situar rapidamente uma narrativa, ao custo de pedir – ou seria impor? – a quem está lendo para que aceite a definição, sob o risco de que não haja aceitação e consequente interrupção da leitura. Tento reduzir esta situação ao não introduzir nenhuma definição como lei imposta e também por não apresentar nenhuma definição sem nenhuma discussão que a precede ou sucede.

Definições são úteis para reduzir – mas não eliminar – ambiguidades e uniformizar entendimentos sob o que está sendo definido, ao custo de excluir muitos outros significados e entendimentos daquilo que se define. Evito esse esgotamento de possibilidades ao indicar o melhor possível, e no caminho deste texto, minhas escolhas de sentido e entendimento, além de explicitar as diferenças entre as minhas definições e aquelas vindas de outras fontes.

Definições compõem uma terminologia, palavra que também nos leva aos fins provisórios: termos, ou términos vêm do latim termō e terminus80. Terminus significa também uma fronteira, um recorte territorial e de propriedade, um limite que cerca algo que recebe um nome, um termo. Definir terminologicamente então já é paraxodalmente indicar os limites da definição. Uma terminologia compõe um conjunto de entendimentos que podem ser comuns – compartilhados por um grupo social – ou específicos de algumas narrativas, e que são diferentes de demonstrações81:

However, a definition is not a demonstration: to show the essence of a thing is not the same as to prove a proposition about it; a definition reveals what an object is while a demonstration proves that something can be said of a given subject (91a1). In a definition we are assuming what we are required to prove in a demonstration (91a35), and those who define do not prove that something exists (92b2o). A definition explains the meaning of the name (93b30).

Em resumo, além de ajudar a reduzir ambiguidades – quando for essa a intenção –, definições e terminologias podem ter abrangência geral ou específica; não são necessariamente factuais, nem necessariamente concretas; nem necessariamente corretas; nem necessariamente verídicas; produzem, porém, um acordo terminológico com uma validade limitada – por exemplo aplicável apenas a um único texto – dentre muitos outros acordos possíveis. Conforme Capurro e Hjørland (2003)82,

In scientific discourse, theoretical concepts are not true or false elements or glimpses of some element of reality; rather, they are constructions designed to do a job in the best possible way. Different conceptions of fundamental terms like information are thus more or less fruitful, depending on the theories (and in the end, the practical actions) they are expected to support.

[…]

In a way, people are free to define terms as they like, but in reality their definitions may encounter problems. […] when somebody defines a term in such an idiosyncratic way, that definition will be neglected and will not contribute to understanding, communication, or the advance of practice.

[…]

Studies of how a term has been used cannot, however, help us to decide how we should define it. When we use language and terms, we perform a type of act, with the intention of accomplishing something. The different meanings of the terms we use are more or less efficient tools to help us accomplish what we want to accomplish. In this way, according to pragmatic philosophers such as Charles Sanders Peirce (1905), the meaning of a term is determined by not just the past, but also the future.

Por isso é importantíssimo analisar criticamente as definições: quais seriam suas causas, suas consequências; quem se beneficia e quem se prejudica com uma dada definição; quais são as possibilidades da “definição” se amparar em resultados de experiências; o que a definição mostra sobre as limitações de conhecimento de quem formulou a definição; qual o impacto e a contundência de uma dada definição; e assim por diante. Pode haver uma ética ou anti-ética implícita na linguagem e sorrateiramente presente nas definições, então é preciso cuidado.

Existem limites lógicos do chamado método axiomático, que é aquele que deriva conhecimentos em forma de consequências a partir de definições iniciais que são assumidas como fatos. Pretendo discorrer sobre isso adiante, num outro ensaio. Por agora, não teremos como fugir dos axiomas, especialmente aqueles implícitos, isto é, aquilo que é assumido em enunciação, como no caso de uma noção:

Definição 12.2 (Noção) Tomaremos por noções os significados imediatos e usuais das palavras dados implicitamente e que possivelmente são comuns entre eu, que escrevi estas palavras, e você que as está lendo83, para que evitemos a complicação de primeiro criar um vocabulário comum para todas as palavras usadas neste texto, o que é um problema intratável, já que precisaria partir de palavras de em direção à exatidão que ainda por cima pode introduzir contradições.

O exercício de comunicação aqui então não assume que temos significações totalmente compartilhadas, mas precisa assumir que haja um mínimo de convergência na linguagem, o que poupará verbo e deixará as definições para os casos onde é importante restringir a gama de significados ou até mesmo divergir um pouco da acepção usual das palavras.

Se começamos de-finindo, isto é, começando por um fim, é hora de recomeçarmos pelo início desta grande narrativa. Que cada definição seja um convite para uma futura redefinição numa eterna instituinte de palavras!

References

Braudel, Fernand. 2004. Gramática das Civilizações. Martins Fontes.
Capurro, Rafael. 2008. “On Floridi’s metaphysical foundation of information ecology”. Ethics and Information Technology 10: 167–73. https://doi.org/10.1007/s10676-008-9162-x.
Capurro, Rafael, e Birger Hjorland. 2007. “O conceito de informação”. Perspectivas em Ciência da Informação 12: 148–207. https://doi.org/10.1590/s1413-99362007000100012.
Capurro, Rafael, e Birger Hjørland. 2003. “The concept of information”. Annual Review of Information Science and Technology 37: 343–411. https://doi.org/10.1002/aris.1440370109.
Eco, Umberto. 1986. Semiotics and the Philosophy of Language. Reprint. Advances em Semiotics. Indiana University Press.
Fontes, Flávio Fernandes. 2015. “O estilo lacaniano e a polissemia dos conceitos”. Fractal: Revista de Psicologia 27 (dezembro): 324–29. https://doi.org/10.1590/1984-0292/999.
Glare, P. G. W. 1968. Oxford Latin Dictionary. Clarendon press.
Laêrtios, Diôgenes. 2008. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2º ed. Editora Universidade de Brasília.
Nascentes, Antenor. 1955. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Francisco Alves.
Rhatto, Silvio. 2024a. Máquinas de Estado: Serviço Secreto, Tortura e Golpes. Publicações Vertiginosas. https://cybersni.fluxo.info.
Torrinha, Francisco. 1942. Dicionário Português-Latim. Porto Editora.

  1. Uma discussão mais detalhada sobre o status destas “Leis” na Seção sobre a Deriva das Leis do ensaio Máquinas de Estado – Rhatto (2024a).↩︎

  2. Laêrtios (2008) - Livro X - Epicuro (37).↩︎

  3. Págs. 347-348; também em Capurro e Hjorland (2007) págs. 152-153.↩︎

  4. Braudel (2004) Cap. 1 pág. 25.↩︎

  5. Eco (1986) Cap 2 págs. 84-85.↩︎

  6. Fontes (2015) pág. 325.↩︎

  7. Fontes (2015) pág. 328.↩︎

  8. Vale observar que a própria visão positiva de que há um progresso e um acúmulo precisa ser questionada e não tomada como um pressuposto, assim como é importante não buscar apenas a estabilidade dos significados.↩︎

  9. Rhatto (2024a).↩︎

  10. Capurro (2008) pág. 349.↩︎

  11. Vide Glare (1968) pág. 1926; Torrinha (1942) págs. 1056-1057; Nascentes (1955) págs. 491-492.↩︎

  12. Eco (1986) pág. 58.↩︎

  13. Págs. 344-346; também em Capurro e Hjorland (2007) págs. 149-152.↩︎

  14. Talvez este seja um pressuposto semelhante a outro trecho da passagem referida anteriormente atribuída a Epicuro – Laêrtios (2008) Cap. X - Epicuro (38) –, sobre usar “a primeira imagem mental associada a cada palavra […], e que não haja necessidade de explicação”; Eco (1986) págs. 84-85 mostra que nas conversações é estabelecido um “dicionário ad hoc” e indica que “a enciclopédia é um conceito semântico e um dicionário é um dispositivo pragmático”.↩︎