10 Cânone

Estes não são ensaios acadêmicos, porém é são ensaios científicos. Ou melhor: de ficção científica: esta narrativa é amparada com o que consegui reunir de literatura sobre o passado e faz a projeção de um futuro distópico. Ciência como método e ficção pelos cenários fictícios de simulação retrospectiva e preditiva/prognóstica. Uma ficção científica sobre um presente possivelmente sem futuro. Uma distopiologia.

Apesar de todo o embasamento na literatura sobre fatos ocorridos e teorias existentes, ele não pretende se impor como leitura correta e sintética de parte da realidade, mas mostrar que conceitos e teorias são muito mais construções intelectuais que servem a determinados propósitos: servem a quem? Para quem? Contra quem? Constroem o quê?

Estes são ensaios teóricos no sentido que não fui necessariamente às ruas ou realizei experiências para testar as hipóteses levantadas e corroborar teorias concebidas. São ensaios práticos na medida em que busco entender a conjuntura tecnopolítica através de relatos, histórias, teorias etc para apoiar modos de existir não-opressivos.

Mas, no que concerne à tradição da pesquisa institucionalizada, basta uma rápida lida no que Umberto Eco recomenda para uma tese acadêmica para entender que fiz, conscientemente, praticamente todas as escolhas opostas: tema abrangente, fora da minha “área” de formação e sem ter a bagagem suficiente para ousar escrever sobre, além de extenso uso de material traduzido de idiomas em que não sou fluente, só para citar alguns pontos que podem ser resumidos por esta passagem47:

In a theoretical thesis, a student confronts an abstract problem upon which other works may or may not have already reflected: the nature of human will, the concept of freedom, the notion of social role, the existence of God, or the genetic code. Considered together, such topics may elicit smiles, as they require the writer to compose what Antonio Gramsci called “brief notes on the universe.” And yet illustrious thinkers have devoted themselves to such topics. However, they usually did so after decades of reflection.

Eco afirma ainda ser um requisito da tese científica a construção de um “objeto” que diz algo novo e que em princípio será útil a terceiros48. Suas colocações estão alinhadas com o esquema acadêmico no qual o conhecimento é produzido em “blocos” atômicos impessoais, separados do sujeito e que são manipulados por uma vasta comunidade através de referências, citações etc, produzindo assim uma espécie de “corrente” da “fidelidade” acadêmica.

Não estando atrás de uma tese e nem perseguindo um “objeto”, não procuro formatação nem aceitação. O risco, evidentemente, é de que este trabalho seja difícil de usar no âmbito acadêmico pela sua incompatibilidade com juízos categóricos de correição. Em compensação, talvez ele seja um bom repositório de ideias – algumas poucas minhas, a maioria de muita gente – para quem quiser investigá-las com rigor acadêmico. Não sei dizer e então lanço este trabalho ao infinito, parafraseando Itamar Assumpção49, sob o risco adicional destes ensaios permanecerem no delírio50:

Qualquer hipótese científica realmente nova é, de fato, da ordem do delírio, do ponto de vista de seu conteúdo, por se tratar de uma projeção do imaginário no real. É tão-somente por aceitar, a priori, a possibilidade de ser transformada ou mesmo abandonada, sob o efeito de confrontações com novas observações e experiências, que ela finalmente se separa disso.

Seria fácil dizer que, na terminologia de Thomas Kuhn51, tento fazer ciência paradigmática e não uma “ciência normal” que siga as instruções de Eco, porém não estou na academia e nem tentando substituir um paradigma vigente por um outro e que a todos governe52.

Nem uma coisa nem outra, muito pelo contrário: Esta é uma obra de ciência precária, ou melhor: ciência precarizada num mundo onde é muito difícil ter a calma e outros recursos necessários para fazer uma boa pesquisa. Mais ainda, é ciência precária cambaleando à beira do abismo, integrando conhecimentos existentes, fazendo com o que dá num momento mais deprimente do que o “usual” da história local e global.

Estou entre ser rápido e criativo ao invés de criar um tijolo de “autoridade científica”53 enquanto tento ao máximo embasar o estudo com trabalhos existentes e muita reflexão. Talvez esteja mais próximo à defesa feita por Feyerabend (2003) da proliferação de teorias de modo mais anárquico, mesmo que estas não apareçam como acabadas, bem aparadas, consistentes como alternativa uma rigidez acadêmica que produz a miséria do racionalismo54:

O racionalismo crítico surgiu da tentativa de entender a revolução einsteniana e foi depois estendido à política e mesmo à vida privada. Tal procedimento talvez satisfaça a um filósofo de escola, que olha a vida através dos óculos de seus próprios problemas técnicos e reconhece ódio, amor, felicidade somente conforme ocorrem nesses problemas. Mas, se considerarmos interesses humanos e, acima de tudo, a questão da liberdade humana (liberdade da fome, do desespero, da tirania de sistemas de pensamento emperrados e não a “liberdade da vontade” acadêmica), então estamos procedendo da pior maneira possível.

Com efeito, não é possível que a ciência tal como atualmente a conhecemos, ou uma “busca pela verdade”, no estilo da filosofia tradicional, venha a criar um monstro? Não é possível que uma abordagem objetiva, que desaprova ligações pessoais entre as entidades examinadas, venha a causar danos às pessoas, transformando-as em mecanismos miseráveis, inamistosos e hipócritas, sem charme nem humor?

Tentarei mostrar que precisamente certas linhas de raciocínio moldaram tais monstros e que uma ciência que não é capaz de autocrítica para entender quais são seus pressupostos políticos pode ser mais um instrumento da dominação e não de libertação55:

A reforma da ciência aqui conclamada implica uma superação da atitude operacional que se impôs e continua a se impor cada vez mais na prática científica: o objetivo da ciência já não é compreender – pois, afinal, que é compreender, se só nos colocamos problemas que podemos resolver e eliminamos todas as questões consideradas “não-científicas”? – , e sim resolver problemas de laboratório graças aos quais se molda um novo universo técnico e lógico, que tendemos a considerar – em virtude de sua eficácia operacional - coincidente com a realidade física inteira. O fato de isso não acontecer, de esse universo ser cada vez mais artificial – para ser repetitivo e reproduzível, para que a antiga ciência possa aplicar-se a ele eficazmente –, constitui, evidentemente, a razão do abismo que reconhecemos, sempre com um certo espanto ingênuo, entre as ciências laboratoriais e a ciência do real vivido. Há nisso uma maquinação da epistemologia ocidental, que H. Marcuse, ao que saibamos, foi o primeiro a denunciar. Julgou-se que, para escapar aos engodos da metafísica, a ciência deveria ser apenas operacional, e eis que nos encerramos no universo alienante e unidimensional do operacional sem negatividade, onde o estrangeiro e o estranho são simplesmente rechaçados, afastados, quando não podem ser recuperados.

Não fazer parte da academia me deixa livre para não ter que seguir os mesmos rituais e respeitar as proibições sobre o que uma pessoa de uma dada área pode ou não fazer.

Isso me deixa livre para ousar, para arriscar a dizer coisas sem ter toda a bagagem cultural e erudição para tal. Tanto o momento quanto a minha vontade e necessidade não permitem que eu me dê esse luxo56. Ainda assim reconheço ter muitos privilégios, especialmente um certo tempo e uma dada calma para empreender esta pesquisa.

Criatividade, imaginação e improviso me permitem criar uma teoria ad-hoc feita de um montão de hipóteses. Assim relaciono possibilidades, tento corroborá-las através de estudos de caso mas elas são mais contribuições a um debate corrente do que tentativas de enquadrar a realidade.

Corro o risco adicional de chover no molhado, dizendo coisas já batidas ou até “reinventar a roda” de maneira tosca e improvisada, dada a inviabilidade de checar toda a pesquisa existente sobre todos os assuntos abordados e meu relativo isolamento atual de vários debates.

Para participar da aventura científica, não é preciso fazer parte de um clube nem pedir autorização…

References

Atlan, Henri. 1992. Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Ciencia e cultura. Zahar.
———. 2015. How to write a thesis. The MIT Press.
Feyerabend, Paul. 2003. Contra o método. 1a ed. Unesp.
Kuhn, Thomas S. 2006. A estrutura das revoluções científicas. Debates. Editora Perspectiva.
Marin, André Ortega; Pedro. 2019. Carta no Coturno - A volta do partido fardado no Brasil. Baioneta.

  1. Eco (2015) págs 13-14.↩︎

  2. Eco (2015) págs. 6, 27-31.↩︎

  3. Em sua música “Movido a Água”.↩︎

  4. Atlan (1992) págs. 124-125.↩︎

  5. Kuhn (2006).↩︎

  6. Talvez pudesse até articular a teoria de Kuhn dentro da minha teorização sobre instabilidades políticas. Kuhn (2006) Cap. 8 pág. 125 usa o processo de agravamento de crises políticas como modelo para explicar as revoluções científicas. Não poderíamos então considerar que teorias de golpes de estado e de repressão poderiam indicar o estado de manutenção ou imposição de paradigmas?↩︎

  7. Marin (2019) págs. 139, 142.↩︎

  8. Feyerabend (2003) pág. 215.↩︎

  9. Atlan (1992) págs. 181-182.↩︎

  10. E isso seria enjoativo, tal como empreendido por uma das personagens do livro “A náusea” de Sartre, empenhada numa leitura linear, sistemática e sem sentido de todos os livros de uma biblioteca, em ordem alfabética; e que me remete à a náusea provocada ao tentar ler, indexar e organizar tudo.↩︎