9 Ciência

Uma estruturação ontológica ocorre pela formação de padrões mentais a respeito de elementos e fenômenos experienciados. Mas tais padrões não representam necessariamente o comportamento do mundo. São conjecturas, podendo ser ideias inadequadas41 sobre o mundo.

Uma ontologia é uma espécie de cartografia do labirinto. Mas um mapa não é o território42.

A construção de cartografias a partir dos caminhos no labirinto das explicações é apenas a parte do método que organiza o conhecimento adquirido. Como avaliar se uma explicação é um conhecimento sobre algo? Como dizer se uma explicação é científica? Noutras palavras, cabe nos perguntarmos como a própria ciência pode ser avaliada cientificamente43:

Mas então, o que é a ciência? Aqui, nós devemos perceber que esta questão não tem uma resposta científica: a ciência não se conhece cientificamente e não tem nenhum meio de se conhecer cientificamente. Há um método científico para considerar e controlar os objetos da ciência. Mas não há um método científico para considerar a ciência como objeto de ciência e muito menos o científico como tema deste objeto. Há tribunais epistemológicos que, a posteriori e do exterior, pretendem julgar e medir a capacidade das teorias científicas; há tribunais filosóficos onde a ciência é condenada à revelia. Não há uma ciência da ciência. Pode-se até dizer que toda a metodologia científica, inteiramente voltada à expulsão do sujeito e da reflexão, se impõe esta ocultação. […] Daí estas incríveis carências: como é que a ciência continua incapaz de se conceber como práxis social? Como ela é incapaz não apenas de controlar, mas de conceber seu poder de manipulação e a sua própria manipulação pelos poderes?

[…]

Conseqüentemente, se nós quisermos ser lógicos com o nosso propósito, precisamos assumir obrigatoriamente o problema da ciência da ciência.

É aqui que é preciso decidir como nosso método será científico, ou seja, quando consegue avaliar e decidir se uma explicação é válida enquanto correspondência a um fenômeno do mundo. Sobretudo um método que seja honesto com quem o pratica e com quem analisará os resultados quando, ao invés de convencer a validade da pesquisa se valendo de subterfúgios, mostrará as limitações conhecidas assim como as potências do estudo realizado.

Como exemplo, consideremos o seguinte arranjo metodológico, epistemológico, ontológico e teórico como um método científico possível e prático para criar, manter ou substituir hipóteses, teorias e ontologias de acordo com experiências.

O critério principal aqui é a testabilidade da concepção do real e seus fenômenos. Ontologias não são testáveis, pois elas tratam de tudo: da existência e da realidade. Testar uma ontologia impliciaria na criação de um universo compostos pelo que a ontologia especifica e verificar se o mesmo “evolui” para o que a ontologia prescreve em termos de comportamento.

Uma solução seria isolar segmentos menores da ontologia que tratam de um grande grupo de fenômenos que formariam teorias sobre tais trechos da ontologia, uma teoria sendo uma suposição do comportamento de fenômenos e elementos.

Ainda assim, teorias tem uma abrangência muito grande e não são facilmente testáveis. Um segmento menor, na escala daquilo uma pessoa ou grupo consegue experimentar e avaliar, é chamado de hipótese.

Este método científico então operararia num constante ciclo:

  1. Conhecer através de experiências prévias (ciclos anteriores).

  2. Pensar sobre as experiências, criando/modificando metodologias, espistemologias, ontologias, teorias e hipóteses sobre o “funcionamento” do mundo, sendo que estas últimas precisem ser testáveis ou ao menos experienciáveis, isto é, que haja uma possibilidade de falseamento das hipóteses.

  3. Predição a partir das hipóteses: que tipo de coisas – vulgo “arranjos experimentais – podem ser construídas que terão um determinado comportamento esperado a partir das explicações geradas pela teoria? A construção e operação destes aparatos produz os resultados previstos (confirmação de hipóteses)?

  4. Avaliação/testes das teorias: mais experimentação baseada nas hipóteses.

  5. Descarte/modificação das hipóteses, teorias, ontologias, epistemologias e metodologias inadequadas.

  6. Repetição o ciclo para modificação ou substituição de todo o arranjo.

Note que a ontologia indica, através das teorias e hipóteses nela ligada, uma maneira como o mundo pode ser alterado para obter um dado resultado – alteração técnica do mundo a partir de um conhecimento prévio –, que por sua vez pode resultar ou não na expectativa: caso afirmativo, a ontologia passa no teste e é mantida – ciência obtida a partir de alteração técnica do mundo; caso contrário ela é descartada, ou melhor, pode ser “arquivada” como conjunto de hipóteses que não pôde ser validada com a experiência que foi concebida.

Note que as palavras inventar e inventário tem uma origem comum44: nesse sentido, “vale tudo”45 no momento de criação de metodologias, ontologias, espistemologias, teorias e hipóteses: não existe padrão, método, ontologia etc de referência para a produção de hipóteses e teorias científicas.

Mas não vou adentrar aqui nos detalhes dos métodos científicos, senão terminaria por escrever outro livro! Só deixo registrado que dificilmente o método será tão regular assim e muito menos composto por instruções em sequência que necessariamente levam a novo conhecimento.

Muito menos que experimentos poderão sempre ser concebidos e montados, menos ainda que possam sempre ser repetidos para que as hipóteses sejam confirmadas! Nem que estabelecem por si só qual o critério de decisão quando duas ou mais ontologias explicam a mesma experiência. Ou mesmo tratando das regiões da ontologia que nem são testáveis. Este tema será abordado novamente na Seção ??.

A própria relação entre metodologia – a grosso modo: a maneira prática de como ganhar conhecimento –, epistemologia – de certo modo: a forma como organizar o conhecimento e a sua aquisição –, a ontologia – de algum modo: o conhecimento organizado num arranjo –, teorias e hipóteses não é assim tão estanque em engessado. Não há nem consenso de como esses conceitos são relacionados ou na necessidade de tantos conceitos separados para falar sobre o conhecimento. Vejamos:

  • Uma ontologia diz respeito de tudo, então teorias, hipóteses e até mesmo a epistemologia e o método são abarcados pela ontologia.

  • Mas, não havendo teste efetivo, uma ontologia será apenas uma teoria sobre o universo. Ou seja, uma ontologia não passa de uma teoria da realidade. Neste sentido, uma ontologia seria uma Teoria de Tudo, e portanto a teoria seria o conceito abrangente e a ontologia um subconceito.

  • É a partir da epistemologia e de um método que conseguimos criar uma ontologia e teorias.

A hierarquização entre ontologia, teoria, epistemologia e método não funciona! São termos irredutíveis uns aos outros equanto uns definem os outros, em circuito.

Assim, num giro espiral, voltamos ao labirinto!

Este método científico hipotético, teórico, ontológico, epistemológico metodológico que usamos de exemplo contém uma característica que pode ser problemática em muitas situações: a objetificação. Assumimos implicitamente em vários momentos que pensamentos podem ser emitidos de forma atomizada e que ontologias tratam da relação entre objetos isoláveis, assim como teorias podem ser decompostas em hipóteses individualmente testáveis.

Isto parece inquestionável, porém não temos ainda um teste que seja conclusivo sobre a necessidade de divisão do universo em conceitos separados. Toda a ontologia que não seja uma simples sentença de um Tudo ou de um Nada indivisíveis parece se assentar nesta operação de divisão.

Como exemplo e exercício, considere adotar a seguinte ontologia que diz assim: “existem dois tipos de seres, aqueles que possuem uma ontologia e aqueles que não possuem”. Existe muita gente que vive bem ser precisar de uma…

Por mais que não consiga fugir de uma ontologização, não quero que a mesma seja calcada numa divisão e separação. Apesar de meu método científico ser involuntariamente baseado nestas divisões, busco relações e explicações para além da delimitação objetificante46.

Estas e outras escolhas fazem com que a presente obra trate de universais mas sem ter a ambição de compor uma universidade…

References

Feyerabend, Paul. 2003. Contra o método. 1a ed. Unesp.
Morin, Edgar. 2005. O Método 1. A natureza da natureza. Editora Sulina.

  1. (TODO?) Espinosa sobre ideias adequadas e inadequadas↩︎

  2. (TODO?) referência ao conto de Borges onde o mapa passou a ter o tamanho do próprio território.↩︎

  3. Morin (2005) Cap. 1 pág. 27.↩︎

  4. (TODO?) etimologia↩︎

  5. Feyerabend (2003).↩︎

  6. Sobre isso, ver a discussão em Morin (2005) Parte I Cap. 4 pág. 156. Mesmo uma obra sobre o pensamento complexo como a de Morin pode ser entendida como um tipo heterodoxo de ontologia… uma ontologia complexa e mutável.↩︎